20.11.11

Um Século de Exposição de Cadáveres

Para a nossa sensibilidade de século XXI, em que deixámos a Morte escondida atrás de cortinas hospitalares e paredes pintadas a cru de lares de idosos, a ideia de considerar uma morgue como ponto de interesse turístico é, no mínimo, estranha, mas estivéssemos em Paris no século XIX, não só nos pareceria natural como apetecível.

A Morgue de Paris atraía multidões na ordem dos milhares de indivíduos e era mencionada nos guias turísticos da cidade.

Desde o século XIV que os franceses tinham locais onde conservavam os corpos não identificados para apresentação pública, numa tentativa de os identificar e entregar aos familiares. Posteriormente, aquilo que era da responsabilidade das ordens religiosas, como a Ordem de Santa Catarina, passou a ser responsabilidade do Estado.
Nas caves do Châtelet de Paris, onde, desde há muitos anos, funciona a sede da polícia, tribunal e cadeia e por onde passaram presos famosos na época da revolução francesa, como Marie Antoinette, existia uma sala onde eram colocados os cadáveres desconhecidos para visionamento e identificação pelo público.
Essa sala era chamada de basse-géôle e os registos da época descrevem-na como sendo pequena e húmida, onde os cadáveres eram arrumados uns sobre os outros e os familiares procuravam, de lanternas em punho, pelos seus entes queridos entre os corpos empilhados.
Numa Paris que tinha expulsado os cemitérios para a periferia da cidade por questões de higiene, este estado de coisas era impensável e, depois de ter sido decretado pela polícia, em 1800, que a identificação de cadáveres era essencial para se manter a "ordem social", foi decidido que era necessário criar uma morgue adequada, construída e desenhada de forma a garantir que a observação dos cadáveres pelo público se faria da forma mais adequada possível.

É em 1804 que é criada a primeira Morgue de Paris, no coração administrativo da cidade, no movimentado Marché-Neuf. Mudam-lhe o nome de basse-géôle para morgue, palavra que tem origem no verbo morguer que significa olhar de forma inquisitiva e fixa.
Este novo edifício ficava junto do Sena, uma vez que, normalmente, os cadáveres eram trazidos por barcos e porque a maioria dos corpos não identificados eram encontrados no rio. Acidentes, suicídios e assassinatos: quase todos os corpos expostos na Morgue de Paris tinham origem no Sena.

O ponto central deste novo edifício era a sala de exposição, com duzentos e dez metros quadrados, envidraçada, com marquesas de mármore onde os corpos eram apresentados ao público. Os corpos era despidos, os genitais cobertos com um pano e as roupas eram penduradas em cabides perto dos corpos, numa tentativa de auxiliar a identificação dos defuntos, que se iam decompondo.

Apesar desta primeira morgue ser uma clara melhoria face à basse-géôle nas caves do Châtelet, com a reorganização da cidade, promovida por Georges Haussmann, ela foi encerrada e destruído o edifício onde operava.
A nova Morgue de Paris, considerada exemplar, modelo de higiene e salubridade, foi desenhada por Félix Gilbert e construída em 1864 nas traseiras da catedral de Notre Dame.

A grandiosidade deste novo local fica expressada pelas dimensões da nova sala de exposição, que com oitocentos e trinta e cinco metros quadrados, conseguia ser quatro vezes maior que a anterior, apresentando duas filas de seis marquesas de mármore negro, permitindo ter doze cadáveres em exposição ao mesmo tempo.

A localização continuava a ser junto ao Sena, mas uma porta nas traseiras do edifício permitia a entrada de novos cadáveres longe dos olhos do público. O novo espaço tinha ainda um maior número de salas de autópsia, uma lavandaria para tratamento dos pertences dos cadáveres e uma maior área para trabalho administrativo.
Três enormes portas de madeira na frente do edifício davam acesso à sala pública onde, através de uma enorme parede de vidro, podia ver-se o interior da sala de exposição, onde ficavam os cadáveres.

Este novo espaço encarava a apresentação dos cadáveres como o seu objectivo principal e dispunha até de uma cortina verde, que era corrida quando era necessário retirar ou colocar um novo corpo ou fazer qualquer outra alteração que se considerasse que não devia ser presenciada pelo público.
Uma vez que os corpos, normalmente, estavam em exposição apenas três dias, a partir de 1877 os funcionários da morgue passaram a fotografá-los, deixando as fotografias e os pertences em exposição, numa tentativa de prolongar a exposição do cadáveres e, com isso, aumentar as probabilidades de identificação.
O prolongamento da exposição era, de facto, uma preocupação. Em 1882, foi encontrada uma nova forma de conservar os cadáveres, baseada no sistema utilizado para o transporte de carnes; sistema que serviu de modelo para morgues em toda a Europa.


No entanto, se considerarmos que a Morgue de Paris tinha cerca de um milhão de visitantes por ano, facilmente percebemos que as visitas dos populares não tinham por objectivo a identificação dos cadáveres expostos, mas sim o espectáculo do macabro.

Esta realidade da Morgue, enquanto atractivo para as multidões e espectáculo gratuito, era especialmente visível quando um caso específico tocava no lado mais sensível dos espectadores.

Sempre que os cadáveres em exposição na morgue apresentavam indícios de crime ou suicídio, os jornais tornavam-nos notícia - em especial se se tratavam de crianças ou mulheres -, apresentando até desenhos detalhados dos corpos e dos indivíoduos que se juntavam para observá-los, o que influenciava o público e arrastava novas multidões para as portas da morgue.
Essas multidões também acabavam por ser notícia, alimentando um ciclo vicioso que mantinha alguns casos nos jornais durante meses.

Existem alguns exemplos famosos e um deles é o da Desconhecida do Sena, cuja máscara mortuária enfeitou as salas dos artistas e burgueses durante anos, um pouco por toda a Europa.

Outro caso muito falado foi o Mistério de Suresnes. Em apenas quatro dias, estimou-se que tivessem passado pela Morgue de Paris cerca de trinta mil pessoas para ver as duas pequenas crianças retiradas das frias águas do Sena: uma bebé de dezoito meses e outra de três anos, que se julgava serem irmãs, sentadas em cadeiras forradas com um material cinzento, por serem demasiado pequenas para serem colocadas nas marquesas.
As crianças acabaram por ser identificadas, retiradas da sala de exposição, descongeladas e autopsiadas; no entanto, a identificação provou ser errada e elas foram novamente congeladas e colocadas na sala de exposição para satisfação dos aficionados.
Foi ainda encontrada uma mulher que teria estado cerca de três semanas perdida nas águas do rio, colocado a data da sua morte próxima da data de morte das crianças, e o interesse nas pequeninas de Suresnes regressou em força. Porém, a mulher foi rapidamente reconhecida e resgatada por um familiar, destruindo a potencial associação às duas meninas.
As crianças acabaram por ser enterradas sem terem sido reconhecidas e o caso desapareceu dos jornais. Este episódio durou cerca de um mês, arrastando multidões de visita à Morgue de Paris.
Como estes dois casos, inúmeros outros fizeram lucrar os jornais de Paris até ao encerramento da Morgue.

Em Março de 1907, mais de cem anos após a abertura da morgue de Marché-Neuf, a Morgue de Paris encerrava as portas ao público, deixando de permitir o visionamento dos corpos pelos populares.
Apenas a familiares de pessoas desaparecidas era dado o acesso à sala de exposição.

Encerrava-se assim um dos maiores espectáculos gratuitos da cidade de Paris, capaz de atrair multidões e o interesse de parisienses e estrangeiros durante mais de um século.

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